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Nuno Dempster, nascido em Ponta Delgada, Açores, em 1944, começou realmente a tornar pública a sua poesia com a obra “Dispersão – Poesia Reunida” (Ed. Sempre-em-pé), em 2008, sendo esta uma antologia de poemas escritos ao longo de dez anos. Seguiram-se-lhe: “Londres”, &etc, 2010; “Uma Flor de Chuva”, Centro de Ensino e Língua Portuguesa (Moçambique), 2011; “K3”, &etc, 2011; “Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo”, Ed. Sempre-em-pé, 2011».
É autor do blog “A Esquerda da Vírgula” e colaborador/ tradutor no blog “Mudanças & Cia - I traditori onesti”.
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O seu último livro «Pedro e Inês - Dolce Stil Nuevo», abre- nos à luz e à sombra que pairam dentro e fora das paredes do mosteiro de Alcobaça, presentificando os amantes ou “surpreendendo-os”, pela força da sua imaginação criativa, nas margens do Mondego ou nas ruas quotidianas dos tempos que correm.
«A esposa que levaste em pedra e rito
Nunca a tiveste, infante. E o mais é mito.»
Ivan Junqueira (em epígrafe)
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Impossível não recordar o célebre verso de Fernando Pessoa, «O mito é o nada que é tudo», Esse nada irreal, fabuloso, com que muitos povos explicam a sua origem ou dão resposta aos seus enigmas. Ou com que se vão criando lendas, fábulas ou até eufemismos da realidade. Mas o mito também pode ser a luz que fecunda novas percepções da realidade, inclusive pelo questionar da função do próprio mito, dos seus conteúdos sagrados ou idealizados e interiorizados colectivamente.
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Penso ser nesta perspectiva que Nuno Dempster, no seu «Dolce Stil Nuevo», se distancia de um outro, liricamente renascentista, e nos apresenta, num estilo novo, sim, límpido, depurado, mas reflexivo em simultâneo, a sua modelação das figuras históricas de Pedro e Inês, presentificando-as na História dos homens, particularmente, contemporâneos.
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A memória histórica do Poeta vai-se confrontando com a apurada lucidez da sua percepção do real, oscilando entre visões de Inês e Pedro na sua época, “redutíveis à História”, “que nada suspeitariam” que seria do amor ou de como poderiam ser, hoje, túmulos de pedra e nascente para uma incursão universal e actual pelos caminhos do amor e do desamor, da vida e da morte, das histórias humanas e o que delas sobra, de certo desencanto face a esta era de ruínas várias, enfim, da natureza e condição humana (como em outros seus livros, aliás) - que a mudança é irredutível na vivência dos homens e na expressão estética.
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“Antemanhãs como essa, em que assassinos
avançam para o sangue no silêncio
rio da noite, tem havido tantas
que já nem se ouve o grito degolado
com que a vida termina de repente.
Há muito se tornaram em costume.
Assim Inês, assim os outros todos
que a História não regista. Todavia,
Vivemos sobre mortos. Inês e Lorca gritam
(«Se levio, caminando entre fusiles»),
grita ainda no Prado o homem de Goya,
longos versos de Sena aos fuzilados.
Revolvo-me ao ouvi-los, Inês bela.
Não conheço justiça que os redima,
e, com eles, os outros mortos todos
que nenhum deus salvou da madrugada.”
Nuno Dempster, “Pedro e Inês – Dolce Stil Nuevo”
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“K3” , um poema único e longo, é uma revisitação da guerra colonial africana, a partir das memórias do autor sobre o tempo que nela passou, nomeadamente no aquartelamento K3, na Guiné.
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A enumeração através do polissíndeto, o vocabulário que remete para um contexto bélico ou de dor, ou sanguíneo, e o ritmo sensorial, as imagens sucessivas, como se estivesse a filmar, a filmar os momentos, a filmar as memórias, remetem para o espanto e o estado de confusão dos soldados; as separações lembrando outras, também lacrimejantes, de saudades antecipadas e do temor da morte. Os jovens mareantes e soldados nada sabiam de despedidas, ausências, saudades, sangue, guerra, morte, a voragem do tempo efémero ou olvidado. A sua poesia era outra, a da ilusão, da ingenuidade, da permanência, do sonho futuro. Nada preparara esta juventude iludida, ingénua, espantada, para o confronto com a ideia de morte, a ilusão que oculta a possibilidade de morte, os insectos, o rugir dos helicópteros, os gemidos, a sede, as macas, os feridos, os moribundos, os naufragados, os esqueletos, a solidão de uma ausência divina ou de uma espécie de orfandade: “e não sei de ninguém/ que cale esta viagem/ nas cabeças dementes e na minha, e possa/ devolver os pássaros / aos choupos;/ e o vagaroso ritmo às colheitas;/ e a inteireza do lódão/ aos homens”.
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Recorrendo habilmente à interrogação retórica e à ironia, o autor questiona este tipo de fidelidade inútil e vã à nação, estes heróis que serão sempre anonimato e esquecimento, a inocência perdida, a memória da infância ultrapassada pelas noites, pelas insónias, pela vileza, que sempre ficará por ser julgada. Interroga a inutilidade de uma guerra a partir do distanciamento entre a dor vivida, a memória dessa dor e o presente, onde parece vigorar a lei do esquecimento.
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Nuno Dempster abre-nos a esta obra com duas epígrafes, podendo nós interpretá-las como um início (da memória, do relato) e uma mensagem final. A de Gomes Eanes de Zurara situa a obra no espaço guineense e evoca os antecedentes circunstanciais da guerra colonial. A de René Char sugere talvez um olhar redentor sobre o passado, agora que da mão do poeta como que floriu uma missão pessoal cumprida: este testemunho que documenta uma época da nossa história nacional, mas que já acontecera antes e continua a acontecer nos dias que correm, em outros lugares do mundo, deixando-nos a realidade de eventos que não devem cair no olvido, que devem conservar-se para memória e exemplo futuros, interrogando-se e interrogando-nos sobre o sentido destas e tantas outras guerras.
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“Que sabia eu do cais de Alcântara
que não tivesse lido
em romances de guerra?
O certo é que vivia mergulhado
numa nuvem de sol,
poalha de luz em volta do meu corpo,
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que obliterava o cérebro,
fototropismo
que me tinha levado a versos
alheios ao que fosse
caminho,
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hoje nem sei como eram,
foram-se na voragem
de cidades perdidas
que me trouxe a este início.
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Que importa?
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Os versos serão sempre
mais do que os mortos
e têm vida curta,
nem sequer me recordo se em algum
nomeei a Estação Marítima de Alcântara.
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É desse cais que evoco a multidão
com lenços brancos
e o súbito rasgar de um choro
que fez levantar mães e raparigas
de sob a mole,
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e a arrastou e moveu em uma onda,
derrubando cancelas
e estremecendo o barco,
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enquanto dois carros de combate
vieram colocar-se
em frente do costado do navio,
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e panfletos voavam,
e paisanos corriam atrás deles,
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berravam e batiam
entre o tumultuar da gente,
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e sombras escapavam,
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já os folhetos estavam recolhidos,
e a multidão, contida por uzis em riste
e carabinas com mira telescópica
no terraço dos prédios,
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e nós quase chorávamos,
na aflição e no pasmo que afastavam
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uma revolta a bordo como aquela
de que há notícia
Fernão Magalhães ter dominado.
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Não me ocorre que alguém tenha filmado
uma partida assim,
as amarras de um barco que se rompem
e os soldados a ver, atónitos,
a alteração dos seus na despedida,
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e, mesmo que o tivessem feito,
como quereria eu saber do filme
se estava nele
e se, confuso,
sentia o sangue de a vida não ter prazo
e, em queda, a eternidade de ser jovem
com a morte adiante,
que um grito colectivo rasurara,
(…)
Lembro-me de Zurara,
do primeiro mercado em Lagos,
onde todos choravam, cativos e habitantes,
a crónica em que iríamos entrar
e revolver as páginas,
herdeiros de naufrágios e zagaias,
devedores de juros ao ínclito Infante,
de juros sobre juros
acumulados há seiscentos anos,
a morte antiga à nossa espera,
,,,
e a banda militar
que veio serenar a gente,
julgo que tocavam hino,
,,,
ó podia ser o hino,
afinal com que música
se inventam inimigos
e fins se justificam?
(…)”
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Nuno Dempster, “K3”
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“Dispersão – Poesia Reunida” é uma antologia de poemas, escritos ao longo de dez anos, apresentando-se dividida em sete partes: “divido-a segundo grandes assuntos e, dentro de cada uma das divisões, por diversas formas de evolução na disposição dos poemas, como se fosse apenas um livro singular e não livro de poesia reunida” (Nuno Dempster): “Caminhos sobrepostos”, “Confluências”, “Osmose”, “Génese”, “Em cinza quente”, “Palimpsesto” e “Inventário”. O primeiro poema a ser escrito foi “Limites” e o último poema a ser escrito: foi “Paraísos”
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No âmbito da tradição da métrica clássica ou fora dela, em versos adequados ao tom descritivo, por vezes narrativo, por vezes reflexivo dos poemas, e com o rigor, a precisão, a depuração, a eufonia e uma sóbria imagética, características do discurso estético de Nuno Dempster, o poeta nomeia o real, interior e exterior.
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Distante da infância, que a memória não substitui, distante do paraíso ou do seu imaginário, longínquo e inalcançável (os primórdios da luz, as árvores, as florestas, as aves, os rios, os mares, um corpo de mulher tangível, um amor vivido, uma certeza de tempo), o poeta surge como estrangeiro num espaço-tempo que parece não conseguir habitar.
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Sente-se peregrino pelos lugares e tempos, como um exilado, na perda de um tempo pessoal e histórico e na presença de um tempo incerto, que é efémero pois não é mais que breve instante entre as horas idas e as sementes do devir. Assim, nele se instaura o vazio, a nudez da cidade, a ruína, a sombra, sem esperança. Desencantado, procura entender a natureza humana e questiona o sentido da vida para os homens, sem elementos de permanência, sem a pura natureza, sem as asas abertas ao sonho, à aventura. Porque seriam lenitivos esses referentes, seria lenitivo um amor claro, ainda que breve e contraditório.
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Também aborda a temática do ofício da arte poética, rejeitando o melodrama e os excessos, a expressão do meramente pessoal. Inscreve a poesia no tempo da sua criação. O poeta será, através da memória e da nomeação do real, um testemunho participativo e a poesia será, no “aqui e agora”, um documento estético e inquietante, contra a apatia, a cegueira, o vazio, o efémero, a morte ou o olvido: “Talvez a eternidade seja ficar nas dunas,/ esvaindo as lembranças pouco a pouco,/ e os símbolos da infância e do amor/ irem cessando até que convocá-los/ se torne o céu que absortos olhos fitam.”
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“FOZ DO DOURO
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Quando penso nas ruas em que andei,
nas ruas das cidades onde já vivi
e recordo as janelas
que guiaram o meu caminho
justamente à hora tardia
de escrever estes versos sem dedicatória,
os olhos endurecem-me,
e sinto que não tenho uma cidade
a que pertença inteiro e possa
dedicar-lhe palavras
de modo tão fiel como os choupos repartem
o sol com os seus bairros;
desconheço se o tempo altera os genes:
a ilha onde nasci
não é minha senão no sangue
de capitães distantes
que meu pai garantia correr-me nas veias,
e o rio que foi meu, o rio largo, mar
onde aquele que eu era mergulhou,
essa ilha afundou-se sem a ver,
esse rio não corre mais,
e, às vezes, quando passo para norte
e o vejo, não o tenho, é outro rio.
Se vivesse nas suas margens,
o exílio não havia de surgir,
seria o velho rio que hoje flui ausente
na memória despida de sinais
e apinhada de rostos mudos,
de mortos e de amigos que partiram,
deixando as margens, antes povoadas,
desertas como o exílio que esvazia
o cenário de acenos e retratos
nas folhas de um jornal lidas há muito.”
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Nuno Dempster, “Dispersão – poesia reunida”
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* Pode ouvir este poema em Sons da Escrita.
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6 comentários:
Eis um autor de que já tinha ouvido falar
mas não conhecia.
Obrigado.
Saudações poéticas!
«... e o rio que foi meu, o rio largo, mar
onde aquele que eu era mergulhou,
essa ilha afundou-se sem a ver,
esse rio não corre mais»
Um poema muito bonito, que apela aos sentimentos...
às saudades de quem
perdemos, do que ficou para trás... podemos voltar ao lugar
onde nascemos... mas o que se procura, já lá não está..
Obrigada... deixo um beijinho!
grato por dares a conhecer...
gostei muito dos poemas.
um nome a fixar.
beijo
Boa partilha
Aguardo-a
na minha escarpa
Bjs
Tudo pelo melhor
Uma postagem interessante sobre um poeta que desconheço.
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Felicidades
Manuel
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