...
...
«Cada vez mais o termo “cultura” aparece a englobar sem sobressaltos o que se designa por “produção literária” e onde se reúnem coisas tão diversas que vão desde as obras, em verso ou em prosa, cujo apelo é inseparável de uma indecifrabilidade radical, até àquele tipo de produtos, também em verso ou prosa, que tanto corresponde ao apenas lúdico como à disponibilidade de informação ou à consolidação de opiniões e sentimentos comuns.
Os efeitos desta indiferenciação são devastadores na medida em que induzem comportamentos em que se desenvolve a conformidade e se aniquila a liberdade que nos define enquanto humanos. Modo de ser, e não livre arbítrio, esta é, como diz Hannah Arendt, a faculdade do começo: “No nascimento de cada homem este começo original é reafirmado porque em cada caso qualquer coisa aparece de novo num mundo já existente que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. É porque ele é um começo que o homem pode começar; ser um homem e ser livre são uma só e mesma coisa”. É na relação com o outro, no ser-em-comum, que se afirma o não-comum da singularidade, aquilo que não depende de nenhum modelo, critério ou valor, mas é a única garantia de não sucumbirmos diante do “império da necessidade”, isto é, da redução da vida à esfera do económico e social. Trata-se de, através da construção de formas discursivas ou outras, preservar o potencial de mudança, de diferenciação infinita, acolher o exterior sem o reduzir a um “ser como”, sem anular nele o excedente, a sua mudez e as possibilidades infinitas de relação que nela se abrem. É neste sentido que a arte abriga a infância e o conflito – sem medida absoluta que as anule em sistemas rígidos de equivalências, as coisas continuam a desencadear-se em múltiplas aparições, o mundo reordena-se sem fim.
A salvaguarda da liberdade, exigindo a atenção dos processos globalizantes, uma debilitação dos modelos e ideais de universalização, a qual só pode decorrer de uma força do pensamento capaz de, pela sua potência de interrupção, abrir espaços vazios no manto liso da cultura e impedi-la de ser inteiramente dominada pelo emaranhado das trocas sociais. Se quisermos resistir á confusão reinante, teremos que perceber que, entre os produtos que são produzidos e circulam segundo os desígnios da indústria da cultura, e uma ideia de literatura como forma artística, não há nada em comum para além de palavras impressas. É preciso impedir que a banalidade que aprece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.»
«Importa portanto dar uma resposta mínima, e bem forte, à questão “o que é a literatura?”. Trata-se de, sem visarmos qualquer essência da mesma, verificarmos que ela corresponde à instauração de um certo tipo de relação com textos escritos e que só quando estamos perante esse tipo de relação é que podemos falar de literatura sem que o uso desta noção corresponda a uma prática mistificadora. (…) É que uma obra de arte (Kant viu isso) não tem função nenhuma e, assim sendo, deixa no mundo espaços vazios, não funcionais. (…) O destino da literatura, e da arte, está hoje dependente da nossa capacidade de prescindirmos de a adorar (de a rodear de um culto), sem que isso implique um menor respeito; (…) Admiti-lo é admitir que é a própria relação que faz vacilar a distinção entre leituras correctas e leituras erróneas e que o segredo ou vazio que suspende a apropriação ou uso desse tipo de textos (a que chamamos literatura) é uma força activa, desencadeadora do sentir-pensar.
Se atendermos a que a distinção fundo/ forma é ela própria uma relação, podemos concluir que os vazios da significação, o silêncio ou inexprimível, constituem o fundo sobre o qual se recorta a significação, e que, por conseguinte, o inexprimível de uma frase, ou de um texto, existe no facto de este ser forma e fundo, compostos segundo certas operações que vão dando limites e desfazendo, deslocando, limites. (…) Aquilo que se destina ao grande público é a espectacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal – a domesticação. (…)
Compreender que a literatura é essencial ao humano apenas na medida em que nela se ultrapassa qualquer tipo de identidade – de sexo, de grupo, de cultura -, e se pode viver o anonimato do não-identificável, a irredutível singularidade do ser único, para o que é preciso recusar todos os processos que concorrem para a sua diluição na cultura de massas. (…)»
«É na poesia, e a partir da poesia, que o pensamento encontra a memória como questão suprema, aquela de que depende o nosso viver num mundo em devir, a nossa capacidade de reunir, em cada instante, um antes e um depois pela operação de uma faculdade primeira, que anima todas as outras faculdades, a memória. (…) As recordações têm, no poema, os seus vazios, o seu fogo oculto. São a memória, a beleza, uma “coisa sem nome”. Sem ser nada de definido, a beleza tem a força da memória, a força do milagre, que faz sobreviver arrancando quem escreve, quem lê, de “milagres mortos”. Porque o poema escrito separa-se daquele que o escreveu. (…) O poema ensina que o sentir, possibilitado pela memória como faculdade inespecífica, não é um caso pessoal, nem a vida alguma coisa que se represente. (…) a partir do momento em que o poema é escrito, e ele não existe antes disso, e se torna susceptível de leitura, o que conta já é uma disposição universal, a capacidade de cada um para fazer jogar imaginação e entendimento, jogo de que o poema fica para sempre suspenso. (…) O jogo entre a imaginação e entendimento é o jogo, que a memória permite, entre sentir e sentido. (…) A poesia identifica-se aí com a Memória, ela é um dom das musas. (…) A forma-poema é memória profética, o que significa que nunca se limita á descrição e interpretação do passado, mas o constitui no próprio gosto que inventa o futuro. (…) A autoridade do poeta como grande educador da humanidade reside na concepção de que a verdade ou origem se diz, ou se promete, na linguagem. (…) A emoção expressa no poema é a memória do poema, a sua faculdade criadora, a sua capacidade de produzir efeitos. (..) Assim se compreende que a finalidade sem fim do poema não permita que dele se destaque uma lei que o organiza. (..) A pertença do poema ao tempo faz com que ele seja sempre começo ou recomeço. (…) O poema anuncia. Ele é aparição do outro que se deixa pressentir no instante – súbito, inesperado. (…) – isso mesmo que faz com que o poeta renasça a cada momento no poema.»
«Conjugar a impessoalidade (universal) com a circunstância (singular) é o mistério das letras. É ele que constitui a relação literatura-vida. O discurso poético não é alheio ao que há de silêncio, de não-linguagem, na sua circunstância, e por isso há nele uma inflexão sem regra, misteriosa. Não se deve por isso acusá-lo de obscuridade – ser obscuro é a sua condição.
A equação que nos exibe a vida como mistério não permite soluções, mas exige resposta: lançados num hiato entre um passado a (re)inventar e um futuro que figuramos em promessa, a nossa existência é resposta. (…) Uma resposta é um testemunho. Respondemos para estar “à altura do que nos acontece”, para acolher o irreconhecível do nosso reconhecimento. Responder é aceitar a interrupção.»
«Uma cultura viva dará sem dúvida grande importância à poesia pois estará apta a respeitar a invenção de novas possibilidades de significação (e de vida). (…) Não é a cultura que precisa da poesia para se enriquecer, é a poesia que precisa de uma cultura que a permita, isto é, que aceite que há em cada homem a potencialidade d se relacionar com os outros pela afirmação da sua dissemelhança, a sua maneira única de participar no mundo. Para que a poesia continue a ser possível, para que o humano não se esgote na eficácia, é preciso uma intervenção política que dê primazia à educação, á preparação para construir um mundo em que possam existir falas-aventuras, falas que abram caminhos através do desconhecido. Ser responsável perante o que vem (através da construção do mundo que se deixa em herança) implica a responsabilidade pela poesia – a defesa de que nada é certo. A Cultura precisa da poesia. Precisa de falas atentas ao princípio – incondicionalmente atentas.»
...
SILVINA RODRIGUES LOPES, in “A DEFESA DO ATRITO” (Edições Vendaval, 2003)
Sem comentários:
Enviar um comentário