22 de março de 2013

LEITURAS # 48

sobre poesia...
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EUGÉNIO DE ANDRADE – “ROSTO PRECÁRIO” (TEXTOS QUE RECUPERAM RESPOSTAS A INQUÉRITOS OU ENTREVISTAS CONCEDIDAS PELO POETA)

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«O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência. (…)

É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto, feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior ao outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade á terra onde mergulha as suas raízes mais fundas; fidelidade á palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.»



«O acto de criação é de natureza obscura; nele é preciso destrinçar o que é da razão e o que é do instinto, o que é do mundo e o que é da terra (…) É no mar crepuscular e materno da memória, onde as águas “superiores” não foram ainda separadas das ”inferiores”, que as imagens do poeta sonham pela primeira vez coma precária e fugidia luz da terra.

Diante do papel, que “la blancheur défend”, o poeta é uma longa e só hesitação. (…) Porque ao princípio é o ritmo; um ritmo surdo, espesso, do coração ou do cosmos – quem sabe onde um começa e o outro acaba? Desprendidas de não sei de que limbo, as primeiras sílabas surgem, trémulas, inseguras, tacteando no escuro, como procurando um ténue, difícil amanhecer. Uma palavra de súbito brilha, e outra, e outra ainda. Como se umas às outras se chamassem, começam a aproximar-se, dóceis; o ritmo é o seu leito; (…) Uma música, sem nome ainda, começa a subir, qualquer coisa principia a tomar corpo e figura, a respirar, a movimentar-se, a afirmar a sua existência e a do poeta com ela, a erguerem-se ambos a uma comum transparência, até serem canto claro e fundo – voz do homem. Porque o poeta vai nascendo com o poema para a mais efémera das existências; são as palavras, a luz e o calor que de umas ás outras se comunicam, que o vão por sua vez criando a ele, acabando por lhe impor a mais dura das leis – a de que se extinga para dar lugar á fulguração do poema, a de que deixe de ser para que o poema seja, e dure, e o seu fogo se comunique ao coração dos homens.»



«Porque esta é a poesia que sempre foi a minha: uma poesia que no corpo se faz alma para que noutras almas regresse ao corpo. (…) Será preciso dizer que foi também nestas terras que os sentidos despertaram e se abandonaram ao desejo doutro corpo?

Mas não foi só o amor, também a desordem e a morte foi aqui que primeiramente as toquei ou pressenti: às vertentes da morte e da poesia chega-se de muita maneira.»



«Estou a pensar nas obsessões do criador, quase todas radicadas na infância, naquelas “duas ou três imagens simples e grandes para as quais o coração se abriu pela primeira vez”, de que nos falou Camus. (…) Há uma série de recorrências que se vão, não direi alargando, mas aprofundando, ao longo de vinte e tal anos de poesia: o fluir do empo num jogo de luzes e sombra; a ascensão e declínio de Eros, que não pode reduzir-se meramente à sexualidade; a descoberta do próprio rosto entre os muitos que nos impõem; a dignificação do homem, num mundo mais empenhado em negar-lhe o corpo do que em afirmar-lhe a alma – preocupações maiores, ao que me parece, da minha poesia, sem esquecer a face acolhedora e materna, metaforicamente extensiva a tanta imagem de vida instintivamente feliz e aberta. (…) São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elemental. (…) A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada. (…) O mal é a ausência do homem no homem. “O deserto cresce”, dizia Nietzsche. O deserto não cessa de crescer. (…) O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre a fingir de música suprema! A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem. Lao Tsé ensinou que quem sabe, não fala, e quem fala não sabe. E Bashô, com um cânone de apenas dezassete sílabas, fez uma das mais esplendidas poesias de que há memória. É da tentação do silêncio, da condenação ao silêncio que falam todos os meus “afluentes”, em prosa ou em verso.»
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1 comentário:

Manuel Veiga disse...

reconheço esse texto - interpela-me...

beijo