11 de abril de 2013

LEITURAS # 49

«É com o espectador que a obra de arte acede ao seu verdadeiro ser (ser estético), isto é, é pelo espectador que a obra de arte deixa de ser coisa entre coisas do mundo para se metamorfosear em objecto estético, sendo este o correlato da percepção estética. (…) O artista é, frequentemente, o primeiro espectador da sua obra e o espectador, pela percepção estética, deve participar do gesto criador do artista, tornar-se como que um cocriador da obra (…).A experiência estética encontra o seu correlato não na obra de arte, porquanto esta é identificada como “produto” da actividade do artista, mas no objecto estético – só este constitui de facto o polo de reciprocidade da experiência estética (…) o objecto estético é a obra de arte percebida enquanto a obra de arte (…) a obra de arte atinge assim a sua glória ou, segundo as palavras do autor [Dufrenne], realiza a sua verdadeira vocação – a de se transcender para objecto estético. A diferença entre obra de arte e objecto estético encontra o seu correlato na distância que separa a percepção vulgar da percepção estética.(…)


Merleau-Ponty sublinhará mesmo que na percepção uma coisa nunca é dada a um único sentido – um vento violento é também aquele que se faz visível na desordem da paisagem. Neste sentido “Cézanne dizia que um quadro contém em si até o odor da paisagem. Queira dizer que o arranjo da cor sobre a coisa (…) significa por si mesmo todas as respostas que ela daria á interrogação de todos os outros sentidos, que uma coisa não teria esta cor se não tivesse também esta forma, estas propriedades tácteis, esta sonoridade, este odor e que a coisa é a plenitude absoluta, que a minha existência indivisa projecta face a si mesma”. (…) Sem renunciar a este nível da presença, mas pressupondo-o enquanto fundante, será preciso considerar os outros planos da percepção – “Não podemos fazer permanecer toda a percepção sensível ao nível do pré-reflexivo. É preciso passar do vivido ao pensado, da presença á representação.” Esta passagem revestirá, no entanto, (e no caso especial da experiência estética) o carácter de uma oscilação perpétua (…).

“Se Cézanne coloca a garrafa obliquamente, não temos de a endireitar, se Renoir faz “desaparecer» os cabelos de uma mulher no fundo do quadro, a ponto de as fronteiras se tornar em indiscerníveis, não temos de as traçar, como se tivéssemos de pintar o retrato. (…) Toda a tarefa da imaginação é então de apreender este objecto na aparência, mas sem lhe substituir um objecto imaginário mais verdadeiro, de que seria o analogon” [Dufrenne]. Nesta recusa de uma participação mais “efectiva” da imaginação da percepção estética está imbricada a crítica a uma concepção de arte como representação ou mimética da realidade.»



O Poético



«É a Natureza que, por uma força inerente a si mesma, dirige ao homem o apelo da palavra, para que o silêncio se quebre e o poema surja. Pelo poema, testemunho da fidelidade ao chamamento escutado, a Natureza sofre uma metamorfose e devém mundo. A sua força de naturante pode agora ler-se, ainda que em filigrana.»

«O estatuto do poeta vem-lhe justamente dessa disponibilidade para acolher o dom da palavra, desse “sim” àquilo que da natureza lhe chega.»

«A palavra é, antes de mais, a luz que vinda do fundo se projecta sobre o mesmo, mostrando-o. Mas, para tal, o homem é sempre requerido. (…) Todo o falar enraíza assim numa escrita prévia e numa co-resposta a um apelo que, sendo simultaneamente pedido e doação, rasura a propriedade daquilo mesmo que se diz. (…) Daí que Dufrenne identifique linguagem natural e poesia.

Mas este privilégio outorgado á poesia remete ainda para aquilo a que chamaremos a “plasticidade” da palavra poética e a sua insubmissão a todo o controlo e previsão, a transgressão da ordem que lhe é inerente.»





Eunice Pinho, “A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem”,

in Separata da REVISTA FILOSÓFICA DE COIMBRA, do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras a Universidade de Coimbra, 1994 (Fundação Eng. António de Almeida)

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