4 de abril de 2015

# POESIA

Entontece o grito das aves em torno da madrugada e retomamos as horas possíveis: há uma salubridade no olhar que nos impele ao declive do primeiro instante, as marés, complacentes, sabem que atravessamos as águas na certeza da bonança e da intempérie como cristais de sal onde intentamos a voz: os dias, na linguagem inequívoca do cais. Maria Manuel Rocha, in "As Horas Possíveis", 2014

26 de abril de 2013

LEITURAS # 51

As Artes Poéticas I, II, III, IV e V de Sophia de Mello Breyner Andersen são sínteses meditativas fundamentais para uma melhor compreensão do universo poético da autora:



ARTE POÉTICA II


A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala duma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão duma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.


ARTE POÉTICA III

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Sousa-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.

Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. E apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.

E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de Esquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça.» Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência.

A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona, a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.

O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência, ele está a contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.


Sophia de Mello Breyner Andresen



21 de abril de 2013

LEITURAS # 50

A POESIA, segundo Jorge Luís Borges *



«Tenho apenas as minhas perplexidades para vos oferecer.

Aproximo-me dos setenta anos. Dediquei a maior parte

da minha vida à literatura e só dúvidas posso oferecer-vos.»


Na sua obra «Este Ofício de Poeta», registo de um conjunto de palestras que Jorge Luís Borges proferiu numa universidade, na década de 60, considera o autor que a poesia (que habita por trás das palavras, “ símbolos para memórias partilhadas”) é essencialmente a experiência de leitura, ou melhor, a experiência desse momento de encontro entre autor - palavra poética - leitor; nessa interacção, “A poesia é uma experiência nova a cada vez. De cada vez que leio um poema, sucede a experiência. E isso é poesia.”

Fala de si como escritor que, quando escreve, esquece as suas circunstâncias, ou tenta esquecer, sendo mais fiel ao sonho que pretende transmitir (e daí surge a ideia da universalidade da poesia, que assim ultrapassa circunstâncias espácio-temporais), mas principalmente refere-se como leitor, considerando que este (o leitor) procura “a beleza, não as circunstâncias da beleza”, que “o significado não é importante – o que é importante é uma certa música, uma certa maneira de dizer as coisas”, uma maneira capaz de despertar a emoção e/ou a imaginação do leitor (“sentimos a beleza de um poema antes de começarmos sequer a pensar no significado”).

Distingue naturalmente a palavra poética da palavra usada quotidianamente: “a ideia de que as palavras começam por magia e de que a poesia as devolve à magia é, ao que penso, verdadeira”. Traça assim o percurso da palavra, que terá surgido oralmente e, de algum modo, com uma função mágica, convertendo-se posteriormente em expressão abstracta. Será a poesia que busca reencontrar na palavra uma forma mágica, seja pela metáfora, seja pelo poder sugestivo do significante, a musicalidade que lhe é inerente, ou pelo modo como, retirando as palavras da sua trivialidade, as renova e nos surpreende, devolvendo-as à sua fonte primordial.

Concordando com alguns pensadores, entende que toda a arte aspiraria à condição de música, por ser esta a única em que “forma e substância não podem ser separadas”. Borges hesita, pois, na definição de poesia como «expressão» o que implicaria equacionar o problema da forma e matéria, evidenciando, em vez, «o que realmente é: uma paixão e uma alegria».


* Jorge Luís Borges: (1899-1986), escritor, poeta e ensaísta argentino.


11 de abril de 2013

LEITURAS # 49

«É com o espectador que a obra de arte acede ao seu verdadeiro ser (ser estético), isto é, é pelo espectador que a obra de arte deixa de ser coisa entre coisas do mundo para se metamorfosear em objecto estético, sendo este o correlato da percepção estética. (…) O artista é, frequentemente, o primeiro espectador da sua obra e o espectador, pela percepção estética, deve participar do gesto criador do artista, tornar-se como que um cocriador da obra (…).A experiência estética encontra o seu correlato não na obra de arte, porquanto esta é identificada como “produto” da actividade do artista, mas no objecto estético – só este constitui de facto o polo de reciprocidade da experiência estética (…) o objecto estético é a obra de arte percebida enquanto a obra de arte (…) a obra de arte atinge assim a sua glória ou, segundo as palavras do autor [Dufrenne], realiza a sua verdadeira vocação – a de se transcender para objecto estético. A diferença entre obra de arte e objecto estético encontra o seu correlato na distância que separa a percepção vulgar da percepção estética.(…)


Merleau-Ponty sublinhará mesmo que na percepção uma coisa nunca é dada a um único sentido – um vento violento é também aquele que se faz visível na desordem da paisagem. Neste sentido “Cézanne dizia que um quadro contém em si até o odor da paisagem. Queira dizer que o arranjo da cor sobre a coisa (…) significa por si mesmo todas as respostas que ela daria á interrogação de todos os outros sentidos, que uma coisa não teria esta cor se não tivesse também esta forma, estas propriedades tácteis, esta sonoridade, este odor e que a coisa é a plenitude absoluta, que a minha existência indivisa projecta face a si mesma”. (…) Sem renunciar a este nível da presença, mas pressupondo-o enquanto fundante, será preciso considerar os outros planos da percepção – “Não podemos fazer permanecer toda a percepção sensível ao nível do pré-reflexivo. É preciso passar do vivido ao pensado, da presença á representação.” Esta passagem revestirá, no entanto, (e no caso especial da experiência estética) o carácter de uma oscilação perpétua (…).

“Se Cézanne coloca a garrafa obliquamente, não temos de a endireitar, se Renoir faz “desaparecer» os cabelos de uma mulher no fundo do quadro, a ponto de as fronteiras se tornar em indiscerníveis, não temos de as traçar, como se tivéssemos de pintar o retrato. (…) Toda a tarefa da imaginação é então de apreender este objecto na aparência, mas sem lhe substituir um objecto imaginário mais verdadeiro, de que seria o analogon” [Dufrenne]. Nesta recusa de uma participação mais “efectiva” da imaginação da percepção estética está imbricada a crítica a uma concepção de arte como representação ou mimética da realidade.»



O Poético



«É a Natureza que, por uma força inerente a si mesma, dirige ao homem o apelo da palavra, para que o silêncio se quebre e o poema surja. Pelo poema, testemunho da fidelidade ao chamamento escutado, a Natureza sofre uma metamorfose e devém mundo. A sua força de naturante pode agora ler-se, ainda que em filigrana.»

«O estatuto do poeta vem-lhe justamente dessa disponibilidade para acolher o dom da palavra, desse “sim” àquilo que da natureza lhe chega.»

«A palavra é, antes de mais, a luz que vinda do fundo se projecta sobre o mesmo, mostrando-o. Mas, para tal, o homem é sempre requerido. (…) Todo o falar enraíza assim numa escrita prévia e numa co-resposta a um apelo que, sendo simultaneamente pedido e doação, rasura a propriedade daquilo mesmo que se diz. (…) Daí que Dufrenne identifique linguagem natural e poesia.

Mas este privilégio outorgado á poesia remete ainda para aquilo a que chamaremos a “plasticidade” da palavra poética e a sua insubmissão a todo o controlo e previsão, a transgressão da ordem que lhe é inerente.»





Eunice Pinho, “A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem”,

in Separata da REVISTA FILOSÓFICA DE COIMBRA, do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras a Universidade de Coimbra, 1994 (Fundação Eng. António de Almeida)

22 de março de 2013

LEITURAS # 48

sobre poesia...
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EUGÉNIO DE ANDRADE – “ROSTO PRECÁRIO” (TEXTOS QUE RECUPERAM RESPOSTAS A INQUÉRITOS OU ENTREVISTAS CONCEDIDAS PELO POETA)

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«O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência. (…)

É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto, feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior ao outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade á terra onde mergulha as suas raízes mais fundas; fidelidade á palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.»



«O acto de criação é de natureza obscura; nele é preciso destrinçar o que é da razão e o que é do instinto, o que é do mundo e o que é da terra (…) É no mar crepuscular e materno da memória, onde as águas “superiores” não foram ainda separadas das ”inferiores”, que as imagens do poeta sonham pela primeira vez coma precária e fugidia luz da terra.

Diante do papel, que “la blancheur défend”, o poeta é uma longa e só hesitação. (…) Porque ao princípio é o ritmo; um ritmo surdo, espesso, do coração ou do cosmos – quem sabe onde um começa e o outro acaba? Desprendidas de não sei de que limbo, as primeiras sílabas surgem, trémulas, inseguras, tacteando no escuro, como procurando um ténue, difícil amanhecer. Uma palavra de súbito brilha, e outra, e outra ainda. Como se umas às outras se chamassem, começam a aproximar-se, dóceis; o ritmo é o seu leito; (…) Uma música, sem nome ainda, começa a subir, qualquer coisa principia a tomar corpo e figura, a respirar, a movimentar-se, a afirmar a sua existência e a do poeta com ela, a erguerem-se ambos a uma comum transparência, até serem canto claro e fundo – voz do homem. Porque o poeta vai nascendo com o poema para a mais efémera das existências; são as palavras, a luz e o calor que de umas ás outras se comunicam, que o vão por sua vez criando a ele, acabando por lhe impor a mais dura das leis – a de que se extinga para dar lugar á fulguração do poema, a de que deixe de ser para que o poema seja, e dure, e o seu fogo se comunique ao coração dos homens.»



«Porque esta é a poesia que sempre foi a minha: uma poesia que no corpo se faz alma para que noutras almas regresse ao corpo. (…) Será preciso dizer que foi também nestas terras que os sentidos despertaram e se abandonaram ao desejo doutro corpo?

Mas não foi só o amor, também a desordem e a morte foi aqui que primeiramente as toquei ou pressenti: às vertentes da morte e da poesia chega-se de muita maneira.»



«Estou a pensar nas obsessões do criador, quase todas radicadas na infância, naquelas “duas ou três imagens simples e grandes para as quais o coração se abriu pela primeira vez”, de que nos falou Camus. (…) Há uma série de recorrências que se vão, não direi alargando, mas aprofundando, ao longo de vinte e tal anos de poesia: o fluir do empo num jogo de luzes e sombra; a ascensão e declínio de Eros, que não pode reduzir-se meramente à sexualidade; a descoberta do próprio rosto entre os muitos que nos impõem; a dignificação do homem, num mundo mais empenhado em negar-lhe o corpo do que em afirmar-lhe a alma – preocupações maiores, ao que me parece, da minha poesia, sem esquecer a face acolhedora e materna, metaforicamente extensiva a tanta imagem de vida instintivamente feliz e aberta. (…) São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elemental. (…) A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada. (…) O mal é a ausência do homem no homem. “O deserto cresce”, dizia Nietzsche. O deserto não cessa de crescer. (…) O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre a fingir de música suprema! A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem. Lao Tsé ensinou que quem sabe, não fala, e quem fala não sabe. E Bashô, com um cânone de apenas dezassete sílabas, fez uma das mais esplendidas poesias de que há memória. É da tentação do silêncio, da condenação ao silêncio que falam todos os meus “afluentes”, em prosa ou em verso.»
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7 de fevereiro de 2013

LEITURAS # 46

DA CULTURA; DA ARTE; DA POESIA...
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«Cada vez mais o termo “cultura” aparece a englobar sem sobressaltos o que se designa por “produção literária” e onde se reúnem coisas tão diversas que vão desde as obras, em verso ou em prosa, cujo apelo é inseparável de uma indecifrabilidade radical, até àquele tipo de produtos, também em verso ou prosa, que tanto corresponde ao apenas lúdico como à disponibilidade de informação ou à consolidação de opiniões e sentimentos comuns.


Os efeitos desta indiferenciação são devastadores na medida em que induzem comportamentos em que se desenvolve a conformidade e se aniquila a liberdade que nos define enquanto humanos. Modo de ser, e não livre arbítrio, esta é, como diz Hannah Arendt, a faculdade do começo: “No nascimento de cada homem este começo original é reafirmado porque em cada caso qualquer coisa aparece de novo num mundo já existente que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. É porque ele é um começo que o homem pode começar; ser um homem e ser livre são uma só e mesma coisa”. É na relação com o outro, no ser-em-comum, que se afirma o não-comum da singularidade, aquilo que não depende de nenhum modelo, critério ou valor, mas é a única garantia de não sucumbirmos diante do “império da necessidade”, isto é, da redução da vida à esfera do económico e social. Trata-se de, através da construção de formas discursivas ou outras, preservar o potencial de mudança, de diferenciação infinita, acolher o exterior sem o reduzir a um “ser como”, sem anular nele o excedente, a sua mudez e as possibilidades infinitas de relação que nela se abrem. É neste sentido que a arte abriga a infância e o conflito – sem medida absoluta que as anule em sistemas rígidos de equivalências, as coisas continuam a desencadear-se em múltiplas aparições, o mundo reordena-se sem fim.

A salvaguarda da liberdade, exigindo a atenção dos processos globalizantes, uma debilitação dos modelos e ideais de universalização, a qual só pode decorrer de uma força do pensamento capaz de, pela sua potência de interrupção, abrir espaços vazios no manto liso da cultura e impedi-la de ser inteiramente dominada pelo emaranhado das trocas sociais. Se quisermos resistir á confusão reinante, teremos que perceber que, entre os produtos que são produzidos e circulam segundo os desígnios da indústria da cultura, e uma ideia de literatura como forma artística, não há nada em comum para além de palavras impressas. É preciso impedir que a banalidade que aprece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.»



«Importa portanto dar uma resposta mínima, e bem forte, à questão “o que é a literatura?”. Trata-se de, sem visarmos qualquer essência da mesma, verificarmos que ela corresponde à instauração de um certo tipo de relação com textos escritos e que só quando estamos perante esse tipo de relação é que podemos falar de literatura sem que o uso desta noção corresponda a uma prática mistificadora. (…) É que uma obra de arte (Kant viu isso) não tem função nenhuma e, assim sendo, deixa no mundo espaços vazios, não funcionais. (…) O destino da literatura, e da arte, está hoje dependente da nossa capacidade de prescindirmos de a adorar (de a rodear de um culto), sem que isso implique um menor respeito; (…) Admiti-lo é admitir que é a própria relação que faz vacilar a distinção entre leituras correctas e leituras erróneas e que o segredo ou vazio que suspende a apropriação ou uso desse tipo de textos (a que chamamos literatura) é uma força activa, desencadeadora do sentir-pensar.



Se atendermos a que a distinção fundo/ forma é ela própria uma relação, podemos concluir que os vazios da significação, o silêncio ou inexprimível, constituem o fundo sobre o qual se recorta a significação, e que, por conseguinte, o inexprimível de uma frase, ou de um texto, existe no facto de este ser forma e fundo, compostos segundo certas operações que vão dando limites e desfazendo, deslocando, limites. (…) Aquilo que se destina ao grande público é a espectacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal – a domesticação. (…)

Compreender que a literatura é essencial ao humano apenas na medida em que nela se ultrapassa qualquer tipo de identidade – de sexo, de grupo, de cultura -, e se pode viver o anonimato do não-identificável, a irredutível singularidade do ser único, para o que é preciso recusar todos os processos que concorrem para a sua diluição na cultura de massas. (…)»

«É na poesia, e a partir da poesia, que o pensamento encontra a memória como questão suprema, aquela de que depende o nosso viver num mundo em devir, a nossa capacidade de reunir, em cada instante, um antes e um depois pela operação de uma faculdade primeira, que anima todas as outras faculdades, a memória. (…) As recordações têm, no poema, os seus vazios, o seu fogo oculto. São a memória, a beleza, uma “coisa sem nome”. Sem ser nada de definido, a beleza tem a força da memória, a força do milagre, que faz sobreviver arrancando quem escreve, quem lê, de “milagres mortos”. Porque o poema escrito separa-se daquele que o escreveu. (…) O poema ensina que o sentir, possibilitado pela memória como faculdade inespecífica, não é um caso pessoal, nem a vida alguma coisa que se represente. (…) a partir do momento em que o poema é escrito, e ele não existe antes disso, e se torna susceptível de leitura, o que conta já é uma disposição universal, a capacidade de cada um para fazer jogar imaginação e entendimento, jogo de que o poema fica para sempre suspenso. (…) O jogo entre a imaginação e entendimento é o jogo, que a memória permite, entre sentir e sentido. (…) A poesia identifica-se aí com a Memória, ela é um dom das musas. (…) A forma-poema é memória profética, o que significa que nunca se limita á descrição e interpretação do passado, mas o constitui no próprio gosto que inventa o futuro. (…) A autoridade do poeta como grande educador da humanidade reside na concepção de que a verdade ou origem se diz, ou se promete, na linguagem. (…) A emoção expressa no poema é a memória do poema, a sua faculdade criadora, a sua capacidade de produzir efeitos. (..) Assim se compreende que a finalidade sem fim do poema não permita que dele se destaque uma lei que o organiza. (..) A pertença do poema ao tempo faz com que ele seja sempre começo ou recomeço. (…) O poema anuncia. Ele é aparição do outro que se deixa pressentir no instante – súbito, inesperado. (…) – isso mesmo que faz com que o poeta renasça a cada momento no poema.»



«Conjugar a impessoalidade (universal) com a circunstância (singular) é o mistério das letras. É ele que constitui a relação literatura-vida. O discurso poético não é alheio ao que há de silêncio, de não-linguagem, na sua circunstância, e por isso há nele uma inflexão sem regra, misteriosa. Não se deve por isso acusá-lo de obscuridade – ser obscuro é a sua condição.

A equação que nos exibe a vida como mistério não permite soluções, mas exige resposta: lançados num hiato entre um passado a (re)inventar e um futuro que figuramos em promessa, a nossa existência é resposta. (…) Uma resposta é um testemunho. Respondemos para estar “à altura do que nos acontece”, para acolher o irreconhecível do nosso reconhecimento. Responder é aceitar a interrupção.»

«Uma cultura viva dará sem dúvida grande importância à poesia pois estará apta a respeitar a invenção de novas possibilidades de significação (e de vida). (…) Não é a cultura que precisa da poesia para se enriquecer, é a poesia que precisa de uma cultura que a permita, isto é, que aceite que há em cada homem a potencialidade d se relacionar com os outros pela afirmação da sua dissemelhança, a sua maneira única de participar no mundo. Para que a poesia continue a ser possível, para que o humano não se esgote na eficácia, é preciso uma intervenção política que dê primazia à educação, á preparação para construir um mundo em que possam existir falas-aventuras, falas que abram caminhos através do desconhecido. Ser responsável perante o que vem (através da construção do mundo que se deixa em herança) implica a responsabilidade pela poesia – a defesa de que nada é certo. A Cultura precisa da poesia. Precisa de falas atentas ao princípio – incondicionalmente atentas.»



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SILVINA RODRIGUES LOPES, in “A DEFESA DO ATRITO” (Edições Vendaval, 2003)

30 de agosto de 2012

LEITURAS # 45

DA POESIA I
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Relendo sobre poesia, alhuns vários conceitos e começando por "Photomaton & Vox", de HERBERTO HELDER, aqui com alguma ironia ou senso de humor na argumentação:
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«Ver sempre o poema como uma paisagem. Esta paisagem é dinâmica. »
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«Declaram que a melhor maneira de contemplar a natureza é de cima de uma bicicleta (Marylin Monroe dixit); talvez a forma eleitamente apocalíptica e luminosa de escrutar a poesia seja de helicóptero. (…) Desde que se assegurou aristotelicamente a arte imitar a natureza, a natureza começou a desviar-se dentro da arte; e então a arte obrigou-se à expulsão da natureza, para ter a casa na sua ordem, e nela manter habitação, sono e insónia próprios, e o despertar e a vida seguida. (…) Veja-se que argutamente substituía, à visão horizontal dos interessados na natureza, a visão vertical – abissal – dos seus próprios panoramas, móveis (assim) em todos os sentidos e direcções, e até imóveis (para os casos obsessivos), quando o helicóptero estaca atentamente no ar, seduzido por particularidades ou generalidades do território poético, também dito texto, escrita ou discurso, conforme conveniências geográficas de dicção. (…) Quando começou a navegação aérea – isto é: nas alturas de Ícaro, apesar da biografia desastrosa-, começou-se logo também com o crepúsculo dos deuses. (…) Por esses dias apareceu gente a fundar na razão da poesia as razões primeiras misteriosas dos eventos. (…) estava inaugurado o uso corrente do helicóptero, o mesmo é dizer: percebia-se que a poesia é um uso – e usualmente abuso – da verticalidade. Good-bye, costumes horizontais e marilyanos da natureza!
Mas julgam que toda a gente desatou a viajar – tanto para o acto de fazer como para o de re-fazer (fruir) – de helicóptero? Há ainda quem viaje em mala-posta! (…)
Maiakóvski fala da bicicleta como um instrumento indispensável ao exercício poético. O poeta deve andar por toda a parte, de bicicleta veloz, para recolher as formas imediatas em que o mundo está a ser. A motocicleta é mais rápida, e o anjo tem toda a vantagem em ir, vir, aparecer, anunciar, munido de bicicleta. Os Anjos de Inferno, nos Estados Unidos, executam o pânico, a exterminação e o espectáculo em formidáveis motos de tubo de escape cortado para produzir um ruído infernal como o das trombetas do Apocalipse. Dies Irae.

A bicicleta do Arcanjo São Gabriel, anunciando a Maria a eleição e a subversão da natureza – a fecundidade na virgindade – é pintada de ouro, azul e prata. Porque não se vê, Fra Angelico usa a metáfora das asas nas costas do anjo, e pede desculpa com muitas cores. Foi preciso decifrar completamente esta metáfora para inventar a bicicleta. Daí para cá nunca mais se parou.»

2 de agosto de 2012

LEITURAS # 44

«Antes de se estudar o zen,
as montanhas são montanhosas e as águas são águas;
após uma primeira noção sobre a verdade do zen,
as montanhas já não são apenas montanhas e as águas já não são apenas águas;
mas, quando se atinge o conhecimento,
as montanhas voltam a ser montanhas e as águas voltam a ser águas”

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Ch’ ing-yuan/ Seigen

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BOAS FÉRIAS A TODOS!
 
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27 de julho de 2012

LEITURAS # 43

“ELEGIAS DE CRONOS, de NUNO DEMPSTER
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“ELEGIAS DE CRONOS, de NUNO DEMPSTER (Edições Artefacto, 2012), é o mais recente livro do autor, um conjunto de poemas extremamente coeso tematica e formalmente, estruturado em três partes: “MAS É DA BREVIDADE QUE VIVEMOS” («Mas é da brevidade que vivemos,/ da alegria que o instante gera/ e deixa na memória/ (…) e no entanto que longo é o hiato/ em que nada regressa/ e a memória se ausenta/ e nos faz escrever sem objecto.»), “MOVIMENTO CÉLERE” («Em toda a parte a gente se transforma/ em movimento célere,/ as partículas à volta de um íman/em contínuo (…)») e “LEITURAS FINAIS” («(…) E agora, que farei com essa imagem/ a brilhar-me nos olhos? Elegias?»). O título indicia o estilo (um discurso depurado e reflexivo) e o conteúdo (mais melancólico ou nostálgico): o tempo, o presente que é o instante sempre efémero, contendo o que já foi e o gérmen do que será.

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Talvez por isso também tripartido semanticamente, ao longo dos vários poemas. Da percepção do concreto imediato, com referentes do quotidiano, do campo e da cidade, das estações do ano, o poeta parte para uma reflexão sobre o passado, que é memória do que foi ou do que podia ter sido, na vida, na simplicidade, nos afectos, no amor, nos corpos, e do qual sobram a memória, a memória do real, concreto ou imaginário, mais ou menos distanciada e alterada, ou o vazio («(…) nem morro nem me mato (…)»,); sobre o presente que é instante curto e percepção do imediato concreto, da natureza, dos segundos vividos ou sentidos, é a necessidade de serenidade, brilho e permanência (metaforizadas nas múltiplas referências a elementos da natureza, nomeadamente, a «árvore», o «silêncio» e as estações do ano (que se metamorfoseiam num ciclo permanente de nascer, murchar e renascer, de permanentes renascimentos e mutações); e, em contraponto, é o ruído e a ruína da cidade, o irredutível fluir do tempo, como Cronos devorando os seus filhos. (breve, veloz, voraz, vulnerável e irreversível). E sobre o futuro, como um oco de incerteza e opacidade, mas também de alguma esperança de complacência. («Nada mais é caminho/ senão o que falta andar (…)», e alguma esperança de reconciliação com a nossa condição temporal, aceitando com que um “carpe diem”) [«(..) um foco de esperança às vezes/ indica-nos a porta/ por onde conseguimos escapar/ à sombra solitária que nos segue.», «(..) Talvez com as papoilas,/ lhe baste a cotovia: vê-la/ e nomeá-la só para ensinar o filho.», «Fujamos para aqui/ onde o presente ainda é nosso.» ]. Além disso, presente e memória do passado são sempre em estado de «metamorfose».
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Trata-se, pois, de uma reflexão, escutada em silêncio, no rumor da memória e dos dias, sobre essa realidade indizível de tempo, essa índole de solidão, ausente de deuses, e desse único instante real que passa irrevogavelmente. Nuno Dempster consegue dizer do tempo em palavras que fluem como as águas de um rio, ora paradas, ora mansas, ora límpidas, ora turvas, ora rápidas e convulsivas, e prevendo um desaguar fúnebre no mar das ondas primeiras e últimas: «Foi-se o tempo em que tudo e nada dura (…)», «(…) um tempo além do tempo (…)», «(…) o presente perpétuo em movimento (…)», «(…) uma rosa-dos-ventos/ sem pontos cardeais (…)», «(…) este lugar/ desolado onde estou (…)», «(…) os homens são insectos/ que em breve fugirão.(…)», «(…) uma vida limitada/ consumir-se, incolor, dura e a gasóleo.», «(…) O pior é que mortos como eu/ ainda se imaginam vivos. (…)», «(…) Este é o tempo/ medido com o sangue e o seu pulsar finito.»
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O tempo dita inadiavelmente o rumo dos nossos dias. O tempo perpassa-nos os dias, habitamos os instantes breves do tempo, e a poesia do indizível habita os poemas de Nuno Dempster. São reflexos do sentir e pensar do sujeito poético, na sua perspectiva de tempo, nos campos e nas árvores, na cidade buliçosa, no amor e nos afectos, na poesia, no acordo possível com esta nossa condição humana, na vida e na morte.
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9 de julho de 2012

LEITURAS # 42

«LUA EM FLOR», de LURDES BREDA

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Muito se poderia dizer sobre LURDES BREDA (Montemor-o-Velho) mas, sumariamente, diremos que é uma escritora extremamente criativa e sensível, que tem escrito essencialmente livros infantis (“O Piolho Zarolho e o Arco-Íris da Amizade”, “O Alfabeto Trapalhão”, “Para ti, Pai”, O Rap do Mar e outros contos de rimar”, “Para ti, Mãe”, entre outros), colaborado na revista literária online “Livros & Leituras” e em jornais de âmbito local e regional, tem ganho prémios em diversos certames literários, participa frequentemente em actividades de promoção da escrita e da leitura, nomeadamente, junto de escolas e é membro d’ “Grupo Poético de Aveiro”.
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O seu último livro, “Lua em flor” (edições vieira da silva, 2012), dirigido a um público juvenil e adulto, apresenta-se, numa coesão temática, estruturado em quatro fases: “Lua Nova”(«Tenho pressa de ver a lua/ a namorar os gatos no telhado./ Coxas entreabertas, Sensuais./ As estrelas já são quase mulheres»), “Quarto Crescente”(«Um lírio do campo,/ uma gota de chuva,/ o teu corpo de poema/ escrito no luar”»), “Lua Cheia”(«O fogo de um beijo/ incendeia a lua, / oculta, sob as asas das fadas.») e “Quarto Minguante(«Sobre o vento da terra,/ que os lábios beijam,/ nascem promessas/ de sonhos anoitecidos/ em pétalas de luar.»)”.
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Numa breve introdução a esta obra de Lurdes Breda, diria difícil encontrar palavras para dela falar, de tão bela. Alternando prosa e poesia, o discurso é sempre poético e sensorial, abordando a temática amorosa nas suas variantes e metamorfoses: o amor como o nascer, o findar e o renascer de uma flor, como as diversas luminosidades emanadas da lua.
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É, pois, o dizível amoroso que se transporta para as palavras da escritora. Os primeiros textos são disso exemplo: um conto de amor, no imaginário de um concerto em palco em que ela se expõe e ele a vai acompanhando e enlaçando: «Apenas não eram aquela orquestra nem aquele palco (…) Só o corpo dela se manteve, até agora, abrigado no meu abraço». A «música» desse concerto, deste amor, vai pontilhando o conto, ao ritmo e ao compasso dos acordes instrumentais e dos rumores da natureza (lento, andante, moderato, allegro, vivace), como se da vida e das emoções da personagem se tratasse: «Os melros assobiavam, escondidos nos ramos dos salgueiros. A harpa ouviu-se, a solo. Emudecidos, os violinos quedaram-se, à escuta. A água do rio gargalhava e saltava de pedra em pedra. Harpa em crescendo. Cascata líquida.»
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3 de julho de 2012

LEITURAS # 41

«Quando Gregor Samsa despertou uma manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num montruoso insecto.»
- quem não conhece esta espantosa frase incial de “A Metamorfose”?
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Passam hoje 88 anos desde o falecimento de Franz Kafka (Praga, 1883-1924), um dos maiores escritores do século XX (de língua alemã). O conjunto de seus textos encontram-se na maioria incompletos e foram publicados postumamente pelo seu amigo Max Brody (contrariando o desejo do autor de os ter destruídos após a sua morte). O seu discurso narrativo aborda questões existenciais e outras, como a burocracia, a perseguição, a alienação.
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«O seu livro A Metamorfose (1915) narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco insecto; O Processo (1925) conta a história de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora; em O Castelo (1926), o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram. O livro A Colónia Penal (1914) fala sobre uma máquina que tem o poder de executar sentenças sem que as pessoas sequer saibam o porquê de sua morte. Essas quatro obras-primas definem não apenas boa parte do que se conhece até hoje como "literatura moderna", mas o próprio carácter do século: kafkiano. (…)Autor de várias colectâneas de contos, Kafka escreveu também a avassaladora Carta ao Pai (1919) e centenas de páginas de diários. (…) Deixou inacabado o romance Amerika e mesmo alguns capítulos de O Processo.» - WIKIPEDIA
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28 de junho de 2012

LEITURAS # 40

"de Viagem", de MARTA DUTRA


Marta Dutra (n. 1974, Açores), após a edição de “Vago”, livro de poesia em 2008,
publicou recentemente o seu segundo livro de poesia: “de Viagem”,
com prefácio de João de Melo:
« O amor, o tempo e a morte 8ou, se quisermos, eros, cronos e tanatos – as três categorias existências do paradigma humano) são, como se sabe, os temas e as motivações mais assíduas da nossa poesia dita existencialista. Sobre eles gravita todo um universo poético de abordagem ao mistério do verbo viver (…). Ei-los também nestes poemas de Marta Dutra (“De Viagem”, presumo eu que sobre a efemeridade de tudo o que está vivo mas para morrer).»

...Nas palavras da poetisa, a escrita é «como terapia», «uma respiração», « a vida como uma Viagem em que se vive, se morre e se renasce a cada dia.», «a vida como uma Viagem de silêncios e de sinais. escritos em cada gesto e em cada palavra numa esperança renovada. Para além do tempo. Para além de todos nós.».
...… um poema:
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«eu disse-te que o silêncio era de pedra. e que das nossas mãos sairia um suspiro. mais profundo que o mar. mais profundo que a terra. no ar pairou uma calma que se apoderou de nós. tu e eu. no suspiro dos ventos. pó e sal. e um suspiro de nós.»
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......Marta Dutra, 2012
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martadutra7@gmail.com


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9 de junho de 2012

AMÉLIA PAIS

* Amélia Pais, nascida em 1943, faleceu a 26 de Maio deste ano, em Leiria. Licenciada em Filologia Românica, pela Universidade de Coimbra, e estudiosa da Língua e Literatura Portuguesas, foi professora de Português e escritora. * Amante das palavras, da poesia, da literatura em geral, divulgou incansavelmente os mais diversos poetas, inclusive na net, no seu blogue “Ao longe os barcos de flores(http://barcosflores.blogspot.com), na sua página do Facebook e através de mailing list. * Foi das primeiras pedagogas a incutir nos alunos o gosto pela poesia e a tornar-lhes mais acessíveis grandes nomes da nossa literatura, como Fernando Pessoa (“Para compreender Fernando Pessoa”), e Luís de Camões (“Eu cantarei de amor”, “Ensinar os Lusíadas” e “Os Lusíadas em prosa” - adaptação juvenil). Escreveu também sobre Gil Vicente, Fernando Pessoa e Padre António Vieira.
Obituário de um ex-aluno, Sérgio Lavos, no seu blogue "Auto-Retrato":
«Não preciso da proximidade entre dois acontecimentos para reforçar nexos de causalidade; mas ainda há poucos dias falava daqueles instantes decisivos que podem mudar o curso de uma vida. E falava também das pessoas ainda mais importantes do que esses instantes decisivos, as pessoas que, ao contrário dos acasos que nos empurram para um ou outro lado, nos puxam, nos rebocam, na direcção certa - se não certa, pelo menos a direcção que nos traz ao presente. Uma dessas pessoas foi Amélia Pinto Pais. Apanhei-a como professora no 12.º ano, na Escola Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria. "Apanhei-a" parece-me um termo adequado - ela foi com uma doença benigna que me deixou imunizado a uma série de ideias feitas da adolescência. Não sabemos o que somos, e sobretudo não sabemos do que gostamos - e aquilo de que gostamos é o caminho mais rápido para a conquista de uma identidade. A professora Amélia Pais não me abriu portas, mas janelas; fez-me perceber por que razão gostava do que gostava e que aquilo de que gostava poderia definir o que seria. Demasiado alusivo? Não - o tempo encarregou-se de apagar os pormenores que a memória guardara, mas a essência continua a ser viva, clara. Ela era a professora que incentivou esforços literários a quem pouco ou nada tinha a oferecer ao mundo. Amante da poesia - manteve o blogue ao longe os barcos de flores durante anos a fio - soube ensinar-me a ler poetas de quem já gostava - Pessoa, Camilo Pessanha, Antero do Quental, Herberto Helder - e mostrou-me outros - mas sobre esta sensação tenho já poucas certezas. Mas também me apresentou prosadores que não estavam no limitado programa de Português - lembro-me de O Perfume, de Patrick Suskind - a obra de culto para os adolescentes da minha geração - mas também de Kafka, de Camus, de Garcia Márquez, autores que definiram a minha transição para a vida adulta. E marcante foi a confissão numa aula de que já tinha tentado ler várias vezes o Ulisses, e que não tinha passado da página 200, provando que ao leitor tudo é permitido, até ser derrotado por uma obra. E acima de tudo revelando a máscara de perfeição que cobre a cara dos professores e mostrando aos seus alunos que, mais do que servir de exemplo, um bom professor deverá sobretudo apontar direcções, mostrar as várias escolhas com que nos iremos deparar ao longo da vida. Cada tentativa com Ulisses é dedicada à professora Amélia Pais. Em Outubro passado, ensaiei a terceira, e posso dizer que passei das duzentas páginas, o marco que ela, há dezoito anos, ainda não tinha ultrapassado - talvez tenha conseguido entretanto, nunca lhe perguntei. Aqui há uns anos, descobri o seu blogue, enviei-lhe um mail, agradeci-lhe. Ela não se lembrava de mim. Eu não tinha sido um aluno marcante, achei normal, mas foi simpática e correcta. Não precisava de se lembrar de mim para eu a achar uma daquelas pessoas que - devo-lhe também correcções aos meus clichés nos poemas que lhe mostrava, mas a este prefiro não fugir - mudam uma vida. A minha, e a da maioria dos seus alunos, não duvido. Dos leitores do blogue. Deixou obra em papel - livros de apoio à leitura dos clássicos, uma adaptação em prosa d'Os Lusíadas. Mas deixou mais - deixou paixão, amor à literatura. E conseguiu passar esse amor a muitos. Terá valido a pena.

No meu percurso de livros por acabar, paixões por resolver, Ulisses que não conseguem regressar a casa, ela foi um dos meus espíritos da boa fortuna, definindo-me. Que descanse em paz - os amantes da poesia vivem sobre a espuma dos dias, merecem essa paz mais do que ninguém.»





18 de maio de 2012

LEITURAS # 39 - A Poesia de Nuno Dempster

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Nuno Dempster, nascido em Ponta Delgada, Açores, em 1944, começou realmente a tornar pública a sua poesia com a obra “Dispersão – Poesia Reunida” (Ed. Sempre-em-pé), em 2008, sendo esta uma antologia de poemas escritos ao longo de dez anos. Seguiram-se-lhe: “Londres”, &etc, 2010; “Uma Flor de Chuva”, Centro de Ensino e Língua Portuguesa (Moçambique), 2011; “K3”, &etc, 2011; “Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo”, Ed. Sempre-em-pé, 2011».
É autor do blog “A Esquerda da Vírgula” e colaborador/ tradutor no blog “Mudanças & Cia - I traditori onesti”.
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O seu último livro «Pedro e Inês - Dolce Stil Nuevo», abre- nos à luz e à sombra que pairam dentro e fora das paredes do mosteiro de Alcobaça, presentificando os amantes ou “surpreendendo-os”, pela força da sua imaginação criativa, nas margens do Mondego ou nas ruas quotidianas dos tempos que correm.

«A esposa que levaste em pedra e rito
Nunca a tiveste, infante. E o mais é mito.»
Ivan Junqueira (em epígrafe)
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Impossível não recordar o célebre verso de Fernando Pessoa, «O mito é o nada que é tudo», Esse nada irreal, fabuloso, com que muitos povos explicam a sua origem ou dão resposta aos seus enigmas. Ou com que se vão criando lendas, fábulas ou até eufemismos da realidade. Mas o mito também pode ser a luz que fecunda novas percepções da realidade, inclusive pelo questionar da função do próprio mito, dos seus conteúdos sagrados ou idealizados e interiorizados colectivamente.
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Penso ser nesta perspectiva que Nuno Dempster, no seu «Dolce Stil Nuevo», se distancia de um outro, liricamente renascentista, e nos apresenta, num estilo novo, sim, límpido, depurado, mas reflexivo em simultâneo, a sua modelação das figuras históricas de Pedro e Inês, presentificando-as na História dos homens, particularmente, contemporâneos.
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A memória histórica do Poeta vai-se confrontando com a apurada lucidez da sua percepção do real, oscilando entre visões de Inês e Pedro na sua época, “redutíveis à História”, “que nada suspeitariam” que seria do amor ou de como poderiam ser, hoje, túmulos de pedra e nascente para uma incursão universal e actual pelos caminhos do amor e do desamor, da vida e da morte, das histórias humanas e o que delas sobra, de certo desencanto face a esta era de ruínas várias, enfim, da natureza e condição humana (como em outros seus livros, aliás) - que a mudança é irredutível na vivência dos homens e na expressão estética.
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“Antemanhãs como essa, em que assassinos
avançam para o sangue no silêncio
rio da noite, tem havido tantas
que já nem se ouve o grito degolado
com que a vida termina de repente.
Há muito se tornaram em costume.
Assim Inês, assim os outros todos
que a História não regista. Todavia,
Vivemos sobre mortos. Inês e Lorca gritam
(«Se levio, caminando entre fusiles»),
grita ainda no Prado o homem de Goya,
longos versos de Sena aos fuzilados.
Revolvo-me ao ouvi-los, Inês bela.
Não conheço justiça que os redima,
e, com eles, os outros mortos todos
que nenhum deus salvou da madrugada.”

Nuno Dempster, “Pedro e Inês – Dolce Stil Nuevo”
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“K3” , um poema único e longo, é uma revisitação da guerra colonial africana, a partir das memórias do autor sobre o tempo que nela passou, nomeadamente no aquartelamento K3, na Guiné.
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A enumeração através do polissíndeto, o vocabulário que remete para um contexto bélico ou de dor, ou sanguíneo, e o ritmo sensorial, as imagens sucessivas, como se estivesse a filmar, a filmar os momentos, a filmar as memórias, remetem para o espanto e o estado de confusão dos soldados; as separações lembrando outras, também lacrimejantes, de saudades antecipadas e do temor da morte. Os jovens mareantes e soldados nada sabiam de despedidas, ausências, saudades, sangue, guerra, morte, a voragem do tempo efémero ou olvidado. A sua poesia era outra, a da ilusão, da ingenuidade, da permanência, do sonho futuro. Nada preparara esta juventude iludida, ingénua, espantada, para o confronto com a ideia de morte, a ilusão que oculta a possibilidade de morte, os insectos, o rugir dos helicópteros, os gemidos, a sede, as macas, os feridos, os moribundos, os naufragados, os esqueletos, a solidão de uma ausência divina ou de uma espécie de orfandade: “e não sei de ninguém/ que cale esta viagem/ nas cabeças dementes e na minha, e possa/ devolver os pássaros / aos choupos;/ e o vagaroso ritmo às colheitas;/ e a inteireza do lódão/ aos homens”.
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Recorrendo habilmente à interrogação retórica e à ironia, o autor questiona este tipo de fidelidade inútil e vã à nação, estes heróis que serão sempre anonimato e esquecimento, a inocência perdida, a memória da infância ultrapassada pelas noites, pelas insónias, pela vileza, que sempre ficará por ser julgada. Interroga a inutilidade de uma guerra a partir do distanciamento entre a dor vivida, a memória dessa dor e o presente, onde parece vigorar a lei do esquecimento.
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Nuno Dempster abre-nos a esta obra com duas epígrafes, podendo nós interpretá-las como um início (da memória, do relato) e uma mensagem final. A de Gomes Eanes de Zurara situa a obra no espaço guineense e evoca os antecedentes circunstanciais da guerra colonial. A de René Char sugere talvez um olhar redentor sobre o passado, agora que da mão do poeta como que floriu uma missão pessoal cumprida: este testemunho que documenta uma época da nossa história nacional, mas que já acontecera antes e continua a acontecer nos dias que correm, em outros lugares do mundo, deixando-nos a realidade de eventos que não devem cair no olvido, que devem conservar-se para memória e exemplo futuros, interrogando-se e interrogando-nos sobre o sentido destas e tantas outras guerras.
...
“Que sabia eu do cais de Alcântara
que não tivesse lido
em romances de guerra?
O certo é que vivia mergulhado
numa nuvem de sol,
poalha de luz em volta do meu corpo,

...
que obliterava o cérebro,
fototropismo
que me tinha levado a versos
alheios ao que fosse
caminho,
...
hoje nem sei como eram,
foram-se na voragem
de cidades perdidas
que me trouxe a este início.
...
Que importa?
...
Os versos serão sempre
mais do que os mortos
e têm vida curta,
nem sequer me recordo se em algum
nomeei a Estação Marítima de Alcântara.
...
É desse cais que evoco a multidão
com lenços brancos
e o súbito rasgar de um choro
que fez levantar mães e raparigas
de sob a mole,
...
e a arrastou e moveu em uma onda,
derrubando cancelas
e estremecendo o barco,
...
enquanto dois carros de combate
vieram colocar-se
em frente do costado do navio,
...
e panfletos voavam,
e paisanos corriam atrás deles,
...
berravam e batiam
entre o tumultuar da gente,
...
e sombras escapavam,
...
já os folhetos estavam recolhidos,
e a multidão, contida por uzis em riste
e carabinas com mira telescópica
no terraço dos prédios,
...
e nós quase chorávamos,
na aflição e no pasmo que afastavam
...
uma revolta a bordo como aquela
de que há notícia
Fernão Magalhães ter dominado.
...
Não me ocorre que alguém tenha filmado
uma partida assim,
as amarras de um barco que se rompem
e os soldados a ver, atónitos,
a alteração dos seus na despedida,
...
e, mesmo que o tivessem feito,
como quereria eu saber do filme
se estava nele
e se, confuso,
sentia o sangue de a vida não ter prazo
e, em queda, a eternidade de ser jovem
com a morte adiante,
que um grito colectivo rasurara,
(…)
Lembro-me de Zurara,
do primeiro mercado em Lagos,
onde todos choravam, cativos e habitantes,
a crónica em que iríamos entrar
e revolver as páginas,
herdeiros de naufrágios e zagaias,
devedores de juros ao ínclito Infante,
de juros sobre juros
acumulados há seiscentos anos,
a morte antiga à nossa espera,
,,,
e a banda militar
que veio serenar a gente,
julgo que tocavam hino,
,,,
ó podia ser o hino,
afinal com que música
se inventam inimigos
e fins se justificam?
(…)”
...
Nuno Dempster, “K3”
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“Dispersão – Poesia Reunida” é uma antologia de poemas, escritos ao longo de dez anos, apresentando-se dividida em sete partes: “divido-a segundo grandes assuntos e, dentro de cada uma das divisões, por diversas formas de evolução na disposição dos poemas, como se fosse apenas um livro singular e não livro de poesia reunida” (Nuno Dempster): Caminhos sobrepostos”, “Confluências”, “Osmose”, “Génese”, “Em cinza quente”, “Palimpsesto” e “Inventário”. O primeiro poema a ser escrito foi “Limites” e o último poema a ser escrito: foi “Paraísos”
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No âmbito da tradição da métrica clássica ou fora dela, em versos adequados ao tom descritivo, por vezes narrativo, por vezes reflexivo dos poemas, e com o rigor, a precisão, a depuração, a eufonia e uma sóbria imagética, características do discurso estético de Nuno Dempster, o poeta nomeia o real, interior e exterior.
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Distante da infância, que a memória não substitui, distante do paraíso ou do seu imaginário, longínquo e inalcançável (os primórdios da luz, as árvores, as florestas, as aves, os rios, os mares, um corpo de mulher tangível, um amor vivido, uma certeza de tempo), o poeta surge como estrangeiro num espaço-tempo que parece não conseguir habitar.
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Sente-se peregrino pelos lugares e tempos, como um exilado, na perda de um tempo pessoal e histórico e na presença de um tempo incerto, que é efémero pois não é mais que breve instante entre as horas idas e as sementes do devir. Assim, nele se instaura o vazio, a nudez da cidade, a ruína, a sombra, sem esperança. Desencantado, procura entender a natureza humana e questiona o sentido da vida para os homens, sem elementos de permanência, sem a pura natureza, sem as asas abertas ao sonho, à aventura. Porque seriam lenitivos esses referentes, seria lenitivo um amor claro, ainda que breve e contraditório.
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Também aborda a temática do ofício da arte poética, rejeitando o melodrama e os excessos, a expressão do meramente pessoal. Inscreve a poesia no tempo da sua criação. O poeta será, através da memória e da nomeação do real, um testemunho participativo e a poesia será, no “aqui e agora”, um documento estético e inquietante, contra a apatia, a cegueira, o vazio, o efémero, a morte ou o olvido: “Talvez a eternidade seja ficar nas dunas,/ esvaindo as lembranças pouco a pouco,/ e os símbolos da infância e do amor/ irem cessando até que convocá-los/ se torne o céu que absortos olhos fitam.”
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“FOZ DO DOURO
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Quando penso nas ruas em que andei,
nas ruas das cidades onde já vivi
e recordo as janelas
que guiaram o meu caminho
justamente à hora tardia
de escrever estes versos sem dedicatória,
os olhos endurecem-me,
e sinto que não tenho uma cidade
a que pertença inteiro e possa
dedicar-lhe palavras
de modo tão fiel como os choupos repartem
o sol com os seus bairros;
desconheço se o tempo altera os genes:
a ilha onde nasci
não é minha senão no sangue
de capitães distantes
que meu pai garantia correr-me nas veias,
e o rio que foi meu, o rio largo, mar
onde aquele que eu era mergulhou,
essa ilha afundou-se sem a ver,
esse rio não corre mais,
e, às vezes, quando passo para norte
e o vejo, não o tenho, é outro rio.
Se vivesse nas suas margens,
o exílio não havia de surgir,
seria o velho rio que hoje flui ausente
na memória despida de sinais
e apinhada de rostos mudos,
de mortos e de amigos que partiram,
deixando as margens, antes povoadas,
desertas como o exílio que esvazia
o cenário de acenos e retratos
nas folhas de um jornal lidas há muito.”
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Nuno Dempster, “Dispersão – poesia reunida”
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* Pode ouvir este poema em Sons da Escrita.
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5 de maio de 2012

um poema, uma oferta

A cara poetisa Luísa Henriques surpreendeu.me com a generosa oferta de um poema seu,
com a sensibilidade e a imagética criativa, tão característica dos seus textos,
escrito a partir do início do meu poema (no "post" anterior).
Muito, tanto, grata, Luísa!
Aqui fica:
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“ entontece o grito das aves”
invade o poema
quando um quadrado de inquietude
acende a pedra azulada sobre a noite.
que corpo nos sobra desta idade do nada
onde flutuamos e nos sabemos
tão dentro da morte?
as mãos num arrepio de vazio
e uma ferida de sangue.
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“ entontece o grito das aves”
o coração do mar.
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Luísa Henriques
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